10.2.06

Peça: 21. Trecho da já conhecida história de Cido Marinheiro

Dizia sempre que nesta vida, neste mundo, não havia lâmina melhor que a sua, que entrasse mais rente, que saísse mais limpa. Dizia que, de tão afiada, sua faca cortava um homem ao meio e esse ainda vivia mais dois três dias sem saber que se desconjuntava o de baixo do de cima.

Tinha essas coisas de homem brabo, de cabra-da-peste: era fulano mordedor. Sangue de jagunço, eu acho. Eu sei. Por estas bandas todos havemos de ter um traço de jagunçaria no corpo ancestral, nos galhos da árvore de linhagens.


Cido Marinheiro era o homem da lâmina. Manuseava a faca como um mágico de feira: seus movimentos eram circo de lâminas. Dizia que era cigano também. Não lia mão, não sabia do futuro de ninguém, senão do seu: fácil saber o futuro de quem não tem futuro algum, de quem é feito só de hojes, de ontens.

Cido Marinheiro me ensinou o circo das facas; a escola delas como chamou João. Cido era um homem só lâmina, era sua essência como essência de faca é só lâmina só. Cido era marinheiro e nem conhecia mar, nem daqui nem de lonjuras. Cido Marinheiro era um engodo, senão pelo que das facas sabia: era lâmina, só lâmina. Cortava gentes pelos caminhos, deitava orelhas de homens grossos nas feiras potiguares.

Cido era só lâmina. Era o sangue de jagunço. Sangue de cigano não tinha mesmo. Não lia mão, não roubava, tomava a bênção e morava no mesmo chão desde o nascimento seu. Era o sangue de jagunço. Homem destas bandas tem parte com jagunçaria, seja em que tempo, seja que homem. Mas o jeito de Cido com a faca, isso não se vê de muito por aqui nem por aí. Cido era só lamina, só.

Meu pai, ele também era Cido. Mais eu era seu filho que fosse ele meu pai. Entendi sempre que sua voz, assim como sua faca, ordenava as coisas em minha casa, casa de meu pai. Pouco usei meu nome em meu tempo, era O Filho de Cido Marinheiro, nome demais para um menino só: uma existência de cada vez é o que se necessita, o que se deve.

Quase em nada Cido meu pai me deu ensinamento. O manejo da faca aprendi só e em segredo, que minha mãe proibia o uso de corte para arte, senão pelo trato da carne. Cido Marinheiro nunca me desvendou o segredo da melhor empunhadura: aprendi no sangue, pelo sangue, que o sangue nas veias de Cido meu pai era o mesmo das veias de seu filho, das minhas. Antes de aprender a falar, antes até do primeiro choro, a minha lembrança mais antiga é a do cabo da lâmina nas mãos: a empunhadura. Como um brinquedo vermelho, uma esperança de outra cor eu me lembrava dela; a faca é meu primeiro espelho. Mais do que me ver, eu estava nela.

A manobra da lâmina está no sangue dos meus, coisas da jagunçaria, jagunçagem, como João Rosa ensinava a chamar. Soube sempre que sangue de ciganos eu não tinha, mas também mentia. Dizia que eram artes das Índias, manuches, coisas do povo que inventou o andar para frente, o parafuso e a alma de quem vive, de quem morre: o que é quase o mesmo. Entanto, verdade era a de jagunço, sangue de quem faz tocaia, de quem morre em tocaia.

Na casa de meu pai nada houve, jamais, que me pertencesse. A casa era sua, a comida só cabia na boca à chegada de Cido Marinheiro à mesa, mesmo minha mãe não era minha: era antes a mulher de Cido. Também ela não tinha nome, senão esse. Não tínhamos. Éramos quase todos feitos de silêncios por dentro e por fora, só as histórias de Cido faziam som em nossa casa. E Cido meu pai não contava histórias, não era disso: as histórias é que o contavam: verdade em quase tudo, o que não era ainda verdade é porque se demorava a acontecer: gente é feita de muitas metades nestas terras.
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in A Casa Miúda

48 comentários:

Marco disse...

Grande Theo! O seu texto é cortante, afiado, frio como o aço da faca de Cido Marinheiro. Ele, mestre nas artes (na Grande Arte, como escreveu Rubem Fonseca!) da lâmina e do corte. Você, mestre na empunhadura das palavras, na imagem exata, cortante, afiada...
Muito bom te ler, Theo! Um abração!

Anônimo disse...

Theo meu caro, que texto surpreendente, mas vindo de vc só podemos esperar algo assim, de mta qualidade. Sabe que o Cido me lembra um pouco o meu pai, no silêncio apenas, pq nas lâminas só eram usadas por ele p/ fins de descarnar as suas caças, já o silêncio estava tão impregnado como se ele inteiro fosse feito de silêncio, profundo, sério, granítico... Belíssimo texto. Grande abraço e beijo!!!!!

Edilson Pantoja disse...

Théo, não por acaso dispus um link para você no Albergue. Acho que o primeiro comentário (Marcos) foi felicíssimo. Teu texto é realmente muito bom. Parabéns! Texto novo no Albergue.

Anônimo disse...

Theo, antes de mais nada: minhas emcionadas reverências... de lágrimas também são feitos os êxtases - extasiado estou, fico e ficarei cada vez que pousar meus olhos nestas danadas letras. De lágrimas também são feitas as lembranças e as saudades - sobretudo e sempre de um certo Tuta, meu avó, meu ídolo, meu Che, meu Cristo, filho de índio, ruminante de silêncios e de sapiências. Ele, Tuta, também manuseava uma lâmina - de canivete, com o qual artesanava seus "paieros" de fumo de corda e fumaças e silêncios e silêncios e silêncios...

Anônimo disse...

Querido Théo, já disse outra vez, e repito sempre: é motivo de alegria entrar no seu blogue e encontrar texto novo. Dá uma emoção, como aquelas que a gente tem quando vai receber presente novo de alguém que a gente sabe que só nos dá coisa maravilhosa. Então, assim que entrei no blogue, devorei o texto, que é cortante, afiado, preciso, LINDO DE MORRER, como só o Théo sabe fazer. Obrigada sempre.

Anônimo disse...

Eu ouvi alguém dizendo Zorba o Grego? Não sei... bem , conheces o Jeff Healey?

Nos vemos no MSN

Um abraçõ!

Theo G. Alves disse...

marco,
muito obrigado por suas palavra tão motivadoras. fico contente que tenha gostado. muito mesmo. a arte das facas sempre me encantou.
muito bom ser lido por você.
Um grande abraço destas bandas potiguares do mundo!!

Theo G. Alves disse...

glória, glorinha,
este texto (na íntegra) está nas miúdas páginas de A Casa Miúda, que você receberá em breve, assim que estiverem prontos. não estão ainda porque a vida não colabora com o ofício das letras e tempo tem sido matéria raríssima. Cidos Marinheiros há em nossas vidas muitas vezes, umas para o bem outras nem tanto. o silêncio é parte fundamental de nossa educação sertaneja.
beijo grande!

Theo G. Alves disse...

Edilson,
agradeço muito pelo link no Albergue... certamente você terá o seu aqui também, pois te visitei e gostei do que vi/li. quanto ao que diz o Marco, ele é muito bom com as palavras e melhor ainda nas gentilezas.
me sinto grato, muito grato.
Um abraço!

Theo G. Alves disse...

Marcos, meu bom amigo,
tua emoção também me emociona. a imagem de cido marinheiro é frequente em mim, muito mais por sua ausência do que por sua presença. tive algumas dificuldades na vida com as figuras paternas, ou suas ausências. bobices, toleimas, como dizia o Rosa. coisa para conversas alongadas que espero termos um dia.
Grande abraço, meu bom amigo. Suas lembranças me envolvem.

Theo G. Alves disse...

marilena,
suas palavras melhoram mt meu texto. sua delicadeza o melhora ainda mais.
nem sei como te responder, como agradecer tua gentileza. leio seus comentários, os dos bons amigos que aqui aparecem, pessoas que escrevem maravilhosamente bem e que admiro e tenho a sensação de que não mereço toda a delicadeza que vocês me dedicam. assim agradeço, humildemente, agradeço.

Theo G. Alves disse...

mut, meu velho.
como te disse, lembro do jeff healey de um show aqui no brasil ha trocentos anos.
um abraço!

Francisco Sobreira disse...

O que me chamou, principalmente, a atenção nesse seu conto/crônica é o detalhe de , seja na temática, seja na linguagem, ele difere um tanto dos seus outros textos aqui publicados. E isso é bom, porque mostra a sua versatilidade. Um grande abraço, Theo.

Anônimo disse...

Caro Theo:

Estou de olhos arregalados ainda,segundos depois de ter findo a leitura.

A emoção trancafiada (não salta aos borbotões) do texto,gólfão da contida exatidão,como num poema de João Cabral de Mello Neto,enternece pelo entrevisto psicológico,retido no perau,nos confins da solidão: "Éramos quase todos feitos de silêncios por dentro e por fora".

Lirismo pungente este: "a faca é meu primeiro espelho".

E saio de teu blog com a memória abarrotada de tua estelística desmedida e bela.

Abraço pernambuquês.

PS: obrigado,meu ser do Seridó,pelo link embebido nesta casa encantadora!

Theo G. Alves disse...

sobreira,
vivo a repetir Borges, humildemente ante sua grandeza, dizendo: "não sei em mim quem escreve este poema". temos tantas faces, tantos caminhos, que sempre se torna tarefa difícil caminhar por um só. e sou libertário, não rechaço escolhas: caio neste abismo perigoso/virtuoso de não escrever como um só, senão por ser um só feito de muitos (o unitas multiplex, de que fala morin)...
Eu fico contentíssimo por você ter gostado, pois conheço o refinamento de seus juízos.
Um grande abraço!

Theo G. Alves disse...

Paulinho,
lembrar de alguma forma um traço que seja do j.c.m.n. é um êxtase. não mereço tanto: meu traço tem seus desvãos. o silêncio, o lirismo e a solidão são coisas comuns neste universo seridoense, potiguar.
suas palavras são das mais generosas.
quanto ao link, é um prazer.
um grande abraço destas bandas do mundo!

Anônimo disse...

Caríssimo Theo:

Eu juro criar juízo a partir de agora - e conferir meus comentários com mais minúncia na blogosfera...

Quis digitar no anterior: estilística.

Theo G. Alves disse...

Paulinho, meu caro,
não precisa se preocupar com esses tropeções que damos nos teclados: é o que mais me acontece.

Veja o que se deu comigo: por causa da internet meu nome perdeu até um acento... antes eu me chamava THÉO, agora sou THEO... isso acontece.
Um grande abraço!

Ivã Coelho disse...

Bem, todo homem é feito de cacos e alguns poucos de lâminas afiadas. O texto, muitos já disseram, é magnífico, algo de rosiano, mas do seu próprio jeito, Théo. Congratulações! Foi um prazer.

Abçs.

Anônimo disse...

texto-lâmina, faca de dois gumes, duas vezes beleza. beijo afiado, theo. adelaide

Anônimo disse...

Que bela história... falando de identidades, da construção de identidades... fala da arte, desta arte que é antes feita de gente e de gestos que de qualquer outra coisa... me remeteu a duas outras histórias: João Cabral de Melo Neto: Meu nome é Severino, não tenho outro de pia, e se me chamam Severino que é Santo de Romaria deram então pra me chamar de Severino da Maria... (eu devo ter trocado alguma coisa, mas a ideia é essa rs). A outra história a que me remeteste: A grande arte, Rubem da Fonseca, conheces? Beijos

Anônimo disse...

Ah, Theo, meu amigo, o que queres dizer com "in A Casa Miuda"? Beijos, Carissimo

Theo G. Alves disse...

adade,
"um beijo afiado" é uma construção mil vezes melhor que meu texto...

dois beijos desses pra ti
:)

Theo G. Alves disse...

marcela,
a vida é processual, como a construção de nossas identidades. o meu Cido Marinheiro, como o pai deste, de tantos outros, se faz sobre nossas tradições e nosso olhar sobre estas: são homens excessivamente reais. a vida é um jogo dos mais intensos.

quanto aos textos remetidos, o do Rubem eu não conheço; mas o do João eu o adoro. o joão muito me interessa e me fascina. um severino e um cido são homens parecidos, como somos a maioria de nós por estas bandas do mundo. me sinto honrado, embora imagine que João esteja a se revirar a estas horas :)

é sempre ótimo te ver por aqui.

um grande beijo!!

p.s.: "A Casa Miúda" é meu segundo livrinho artesanal "publicado" (com licença da má palavra) em 2005. é um livro de memórias inventadas, todas verdadeiras, evidentemente. depois te mando um e-mail explicando melhor.
beijos de novo!

Lua em Libra disse...

que bonito, que bonito, que bonito. Adorei a casa míúda do filho só lâmina. Cortou-me fundo o ritmo. Sabe, lembro um tanto um escritor daqui do sul chamado Altair Martins. (Ins)creves belo no coração a tua lâmina de Cido.

Abraços

Marco disse...

Caro Théo:
Como faço para adquirir um exemplar de "A Casa Miúda"? Faço questão de te ter na minha estante em lugar nobre.
Por favor, me diga quanto custa (incluindo despesas de correio, evidentemente) pelo meu endereço eletrônico (batmarco@terra.com.br). Um forte abraço.

Theo G. Alves disse...

Cecília,
fiquei curioso para conhecer os textos de Altair Martins...
e fico agradecido por suas palavras tão gentis.
um grande abraço!

Theo G. Alves disse...

marco, meu caro,
"A Casa Miúda" enfrenta um pequeno/grande problema: como é um livro artesanal, uma edição independente totalmente "contruída" em casa através de lenta impressora e corte manual, as tiragens são minúsculas: nos ultimos 7 meses, só consegui "construi" 30 exemplares. Infelizmente tenho apenas 1 comigo, que é o meu exemplar 00.
Porém, tenho um amigo livreiro que talvez ainda disponha de algum exemplar de uma tiragem numerada e rubricada: é o Fabio Ulanin, da Livraria Pasárgada (o link para ela está aqui ao lado). é só mandar um e-mail para o Fabio e ele certamente te responderá prestamente, ótima gente que ele é.

um grande abraço, meu caro!!

Márcia Maia disse...

Maravilha, Theo!Um beijo.

Anônimo disse...

Cara, teus textos sempre me surpreendem. Excelentes, seja em verso, seja em prosa. Precisas vir à Natal, para conversarmos, um dia.

Saudações

Kimu disse...

Cortes precisos dessa outra faca: a escrita. Excelente personagem e texto pra lá de bom Théo! Bjos.

Theo G. Alves disse...

celso,
sei de seu bom gosto, por isso sua aprovação me deixa ainda mais contente. me sinto honrado.
quanto a Natal, gostaria muito de dar uma passada aí para conversarmos. infelizmente vou pouco à capital (devem ser os complexos de filho abandonado que tenho eheheheh), mas faremos o seguinte: me programarei para ir em algum dos feriados que tivermos e combinaremos bem tudo isso. seria um grande prazer conhecê-lo pessoalmente.
Um grande abraço!

Theo G. Alves disse...

Dona Estultícia,
ótimo vê-la por aqui novamente. quanto ao Cido Marinheiro, esse é mesmo uma figura por quem tenho admiração enorme.
fico todo agradecido!!
beijo!!

Theo G. Alves disse...

Obrigado, Marcia!
beijo!

Claudinha ੴ disse...

Théo, eu já havia comentado este seu post, mas parece que não enviei corretamente! Só hoje ao procurar atualização, percebi.
Acho que Cido era só lâmina porque sua missão era entalhar, era retirar ferpas, era descascar as cascas que a vida criasse, para que seus frutos fossem os melhores.
Um beijão!

Anônimo disse...

Théo,
É um prazer imenso te ler. Adjetivos não faltariam para comentar este texto mas acredito que meu silêncio seja mais eloquênte. Grande bjo.

Anônimo disse...

Théo,
É um prazer imenso te ler. Adjetivos não faltariam para comentar este texto mas acredito que meu silêncio seja mais eloquênte. Grande bjo.

Theo G. Alves disse...

Claudinha,
estes probleminas com a tecnologia aocntecem comigo todo o tempo... no mais peço desculpas pela demora na resposta, mas o problea é que tenho andado tão às turras com o trabalho que mal tenho vindo a este museu...
quanto ao Cido, oxalá seu frutos tenham mesmo se tornado melhores. Às vezes tenho medo de que tenham se enchido de certo veneno...
beijo bem grande!

Theo G. Alves disse...

Anne,
melhor é o prazer de ser lido por você. entendo o seu silêncio.
obrigado!!

um grande beijo!!

Theo G. Alves disse...

milton querido,
deves ter ouvido falar desta casa miúda na tua casa de gentilezas, que é graúda, graudíssima!
e é sempre bom ter tua leitura!
um grande ebraço!!

Anônimo disse...

texto lindo, theo!!..e este verbo jagunçar nos espreita, volta e meia aparece para nosso assombro e admiração..um beijo.

Theo G. Alves disse...

ronaldo, com os amigos por perto este museu fica melhor!
Um grande abraço!

Theo G. Alves disse...

célia,
jagunçar é coisa que tem suas valias. assombro e admiração são palavras próximas.
beijo grande!!

Anônimo disse...

oi, theo, saudadesss de vc..fiquei mal acostumada!! rsss. um beijo

Theo G. Alves disse...

célia, também eu ando com saudades... do proprio museu até, mas principalmente das paginas dos amigos que tanto gosto.
tnho tido problemas com horarios, tempo pra mim, essas coisas: males da vida real...
vou tentar arrumar um tempinho neste carnaval pra revisitar os amigos...
beijo!!!

Anônimo disse...

E aí, Theo, meu caro. Passando pra dar uma olhadinha no Museu e deixar um abraço para o curador.

Theo G. Alves disse...

Marcos,
o abraço dos amigos é sempre um grande prêmio.
Venha sempre!
Outro grande abraço!

Anônimo disse...

Theo, o Paulinho sabe mesmo quem recomendar, por isso, eu sua seguidora nem discuto, vou logo ver o link que voa em sua página...Seus textos são muito bons e vou te visitar mais vezes...um beijo de mim