20.3.06

Peça: 00 A Poeira Sobre Estas Peças

A poeira sobre estas peças é a pedra da fundamental deste breve museu. Ela está sobre tudo mesmo antes de seu primeiro piso, de meus primeiros alumbramentos. A poeira deste museu é anterior à matéria de que são constituídas estas peças. Anterior ainda ao tempo, a Deus, quem sabe.

Desde minha primeira manhã por estas bandas, percebo que o tempo é imenso e que sua ausência é ainda maior e mais profunda. Uma terra em que os dias não se medem pelos calendários, em que cada um decide o dia em que está e, por isso, todo dia é sempre o mesmo e sempre outro.

O coração dos relógios está parado nestas terras. Não de hoje. De antes. Muito antes. Os galos que anunciam as manhãs cantam ainda indistintamente sem saberem ao menos que dia anunciam: lembram malmente os acordes de suas cornetas matinais. Cantam por hábito, mais que por ofício.

Por isso tanta poeira sobre estas peças. Tanta poeira sobre os relógios. Tanta poeira sobre estas terras.

5.3.06

Peça: 23. Um Silêncio Germinado

Vejo nascer um silêncio de dentro para dentro, mais dentro ainda; profundamente. E a boca vai devorando por fora o rosto que a sustenta, alimentando-se do corpo, não para o corpo. Saciada, devora a boca a boca; engole-se. Devora a si mesmo e põe-se miúda, miúda como um universo retraído que não se expandisse nunca. A boca condenada ao silêncio.

Sem voz alguma, percebo que a distância maior para dentro do mundo que alcanço é a longitude de meu braço estendido através das grades por onde assisto à vida. Desejo tocar o mundo mais adiante e não o alcanço: minha alegria e minha discórdia. Desejo o mundo que não tenho e a alegria do universo que é meu, estas grades que me cabem, afunda minha carne dolorida na angústia de exigir o inalcançável.

Nascido o silêncio em mim, percebo que a vida não aconteceu ontem à noite, que não acontece agora e que amanhã já não será. A vida, o mundo, são todo o tempo todo o tempo: sempre. Mas a boca devorada já não dirá uma palavra que possa ser decifrada.


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Algumas explicações: o tempo tem sido um tanto cruel comigo nestas últimas semanas, culpa destes dias muito pequenos, cheios de horas muito miúdas. Por isso tenho visitado tão pouco os visitantes tão estimados deste museu, ou até mesmo respondido particularmente a cada comentário, como é hábito por aqui. Tenho esperanças de que o tempo volte a rodar da maneira certa por aqui. Quanto aos comentários, me esforçarei mais para poder respondê-los prestamente.
Um abraço.
Theo
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a foto é de uma cena do belo Tão Longe, Tão Perto, do alemão Wim Wenders, sempre presente neste museu