28.8.07

Peça: 36. ...

Esta breve narrativa foi escrita alguns anos atrás numa oficina de contos da qual participei com alguns amigos. O exercício nos obrigava a escrever pequenos trechos narrativos que fugissem um tanto de nossas tendências naturais. Aí vai o resultado que muito me divertiu à época.

“Não vou botar minha boca aí”, eu disse para ele. E disse assim mesmo, na lata, na cara dele. Ele ficou sem ação, tentou me segurar pelo braço, mas me livrei. Ele insistia, dizia que ia ser bom, que eu levava jeito e que isso ia fazer de mim uma menina mais interessante. “‘Menina’ um caralho”, eu gritei. Gritei e saí correndo, sem olhar para trás. Corri. Corri muito. Pensei que ele fosse me alcançar, que fosse me empurrar para eu cair de cara no chão. Eu chorei até. Não sou de chorar, mas eu chorei. Nessa hora eu chorei. Ficava me lembrando daquela coisa imunda e dele me pedindo, mandando, botar a boca, assoprar, com força. Imundo. Eu corria mais ainda. Tinha a sensação de que ele ia me alcançar. Quando cheguei perto da praça fiquei mais tranqüila. Olhei para trás e ele não estava. Não tinha a certeza de que ele tivesse me seguido, mas eu o sentia perto de mim, correndo. Sentada no banco da praça, sobre o sovaco branco do cristo, me lembrei daquele negócio. Eu não ia botar a boca naquilo jamais, nem morta. Decidi naquela hora, ali mesmo, na praça, que eu só tocaria piano: isso de saxofone é coisa para quem não tem higiene.