22.2.07

Peça: 32. Uma Carta Escrita ao Longo dos Anos

Currais Novos, janeiro de ...

Tudo está como sempre. Sabes bem que as coisas por aqui nunca mudam e são sempre as mesmas e é sempre o mesmo tempo, prenúncio e ataúde de um heráclito fracassado. Sabes bem que aqui o tempo não existe: ou nós não somos de fato: nem as coisas reais existem de verdade nestas terras. Nunca se pode compreender por inteiro. Fato é que tudo está igual, afora as coisas sempre diferentes.
Esperamos a chuva. Há boas promessas para fevereiro e os donos dos dias já falam em adiantar algumas semanas para a chegada de março, assim garantem que chova certamente no dia da ciência de São José. Sabes bem que por aqui o tempo é sempre distinto.
Nossa mãe fala cada vez menos. E escuta menos cada vez mais, está sempre a confundir nossos nomes e esquecer-se de tudo. Ainda insiste na máquina de costura que, se não costura nada, embala meu sono no chilrear antigo de nossas roupas ainda mais antigas. Em breve nossa mãe morrerá e tudo continuará igual, afora as coisas sempre diferentes.
Nosso pai, sabes bem, foi embora. E isso já é oferecer notícias demais.
Os meninos. Os meninos estão quase todos mortos. Ou quase mortos todos. Não mais de sede, como alguns estrangeiros desavisados possam ainda imaginar, mas de tédio e cansaço. O cansaço nos toma a todos invariavelmente, sobretudo a gente miúda como nós, sem vocação para as grandiosidades do tempo e da vida. Às vezes penso que não estar aqui seja mesmo o melhor lugar em que se possa ser. Sinto medo, eu confesso, confessamos, não do que nos espera, mas da ausência que nos toma. Temos nos distanciado tanto e de tudo que, de quando em vez, apenas ao não me ser é que me encontro. Confusas estas frases, no entanto, as mais sinceras. Confusas ainda mais: falo de nós, falamos de mim.
Tens notícias de Deus?
Por aqui já não aparece há tempos, sabes bem. Tudo está igual, afora as coisas sempre diferentes. Ainda esperamos, sebastianamente, por Ele, é verdade. Mas, também sebastianamente, temos a quase certeza de que já não virá. Deve andar ocupado com gente maior, que é sempre mais importante. Gente miúda como nós sobrevive bem à espera. Que mais poderíamos nós fazer que diferente fosse de esperar. Esperar até brotarem os prefixos e apodrecer-se o verbo.
Penso que, em breve, pouco restará do que temos sido todo este tempo. Descobrimos esta maneira profilática de nos exterminarmos limpa e lentamente. Não haverá sangue nas ruas, nem mesmo gente morta. O que morrerá são nossas particularidades, nossas pequenas diferenças. O que sempre fez de nós o que somos, agora não é nada, senão poeira de tempo e amarelo.
Do que te importarão essas coisas, pensamos. Talvez de nada. Talvez nem mesmo chegues a ler esta carta confusa em que falamos de mim, falo de nós. Talvez desdenhes estas terras, não sei. Mas aqui ainda mantemos o costume de dar notícias. Espero que tu já não tenhas mais o costume de não as receber.
Digo, dizemos, que em pouco não mais te escreverei, escreveremos. Não pela falta de respostas tuas, que isso jamais foi obstáculo, nem mesmo pela ausência nossa, mas porque nosso dia de se aproxima e, rezamos, não haja mais necessidade de enviar ou receber recados de onde estaremos.
Ainda que nossas casas estejam sempre abertas para ti, pedimos que não voltes. A distância há de tornar nossa imagem mais bonita.

Adeus.
Nós assinamos esta carta.

15.2.07

Feed

Para os bons amigos que visitam este museu quase sempre tão empoeirado, estou aderindo ao tal "feed", coisa que brutos como eu custam a entender.

O feed avisará aos amigos que utilizam esta ferramenta quando houver novas peças e velhas almas neste museu.

Oxalá isso funcione.

9.2.07

Peça: 31: Todo Sempre É Por Agora

Todo sempre é por agora. E a hora inevitável é sempre esta e esta e nunca outra e não a próxima. A hora inevitável, por ora, este caminho de tempo feito de estrelas e pó, de miudezas e esquecimento.

A boca semi-aberta pelo tempo ainda rebrilha como a chaga recém aberta a brotar sangue jovem e ainda viscoso. O tempo é este relógio morto à faca na calçada de casa às quatro horas da manhã. Já quase arborecia um sol de raízes secas e voláteis. As raízes em barro seco são para sempre efêmeras como a voz dos galos.

Todo sempre é por agora como foi infinito o dia de ontem, a hora vazia dos relógios moles de Dali e a mala ainda não feita de Álvaro de Campos: o cansaço do corpo finito no tempo infinito de agora.


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Aproveito para agradecer ao Milton Ribeiro por ter me enviado o famoso questionário do Proust e por ter publicado minhas simplórias respostas em seu espaço, que é dos melhores do universo dos blogues.