16.1.07

Um Homem é Feito de Silêncios

Um homem é feito, sobretudo, de silêncios. É o silêncio a matéria que precede o barro, o silêncio da criação. E é desse silêncio que retomamos nossas forças, nossos impulsos.

Os primeiros esboços de um novo ano começam a ser traçados. Já se podem perceber algumas formas por trás destes primeiros dias: o esboço ainda é tímido, no entanto. Assim começam todos os anos: lentamente.

Esse começo lento é precedido por silêncio. O mesmo silêncio que precede o tempo e que a ele sucederá, provavelmente. O silêncio mesmo que havia antes do Nada e antes da ordem de se fazer a luz.

Desse silêncio sou feito. Cada um de nós e eu.

Este ano que já não é foi carregado de silêncios. Um calar profundo, de me fazer quase esquecer quem sou. O silêncio desse ano que já não é foi pesado, embora recompensador. Não consigo ainda recordar de todo meu nome e meu rosto diante do espelho: não os recordo exatamente ou já não são mais os mesmos. Pouco importa, aliás. Afinal, que importa o nome e a cara que temos? Não são nada de fato. O silêncio sim, o silêncio é.

Este ano que agora começa, lentamente eu disse, me traz algum som e o primeiro são estas linhas, enigmáticas talvez ao ponto de nada significarem senão para mim. Que seja, as primeiras palavras são quase sempre incompreensíveis. Só os silêncios são suficientemente claros e suficientemente eloqüentes.

As ruas sob o véu denso das madrugadas, a praça, a feira, as estátuas todas dormentes na madrugada: pode-se tocar com as mãos sujas no silêncio que as doma e é possível entender o que dizem, cada rua, cada beco, cada voz inaudível. É um convite: andem pela cidade nas madrugadas, sobretudo as raras madrugadas que sucedem as chuvas. São poucos os lugares em que se ouvirá melhor o silêncio das coisas. É nessas horas que só as coisas reais existem de fato.

De fato existe o silêncio.

O silêncio que principia estes primeiros sons. O silêncio que precede e sucede tudo, desde o sopro de Adão até o fim de todas as coisas, que precede e sucede o tempo, a música, a vida e o esquecimento. Que precede e sucede o riso, a angústia, o choro e a ventura. O silêncio que é.

Que tudo recomece. Que saibamos ouvir o que nos diz nosso silêncio criativo.
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Oito ou dez coisas para começar bem 2007

O livro Ó Serdespanto, do paraense Vicente Franz Cecim
A comédia sensível e despretensiosa A Vida Marinha com Steve Zissou
O profundo e belo filme Nossa Música, de Jean-Luc Godard
Um disco de Noel Rosa
Uma visita ao tenebroso site de fantasias Celebration Complex (
www.celebrationcomplex.com.br)
Uma visita aos bons e velhos amigos
Qualquer poema do Manoel de Barros
Ter um cachorro
Encurtar a memória para que a vida não pese demais
Desligar os telefones
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Este ano, para garantir algumas publicações aqui no museu, vou publicar as colunas que escrevo para o Jornal do Seridó, jornal aqui de Currais Novos. Essa é a primeira coluna do ano.

13 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro, a sua postagem de hoje, em duas partes, está simplesmente ótima. Aproveito para lhe informar que tem poema seu no Balaio. Um grande abraço.

Theo G. Alves disse...

Salve, Moacy!

Agradeço pela bondade e pela inclusão tão generosa no Balaio. Vou lá agradecer em pessoa.

Um grande abraço!

Bruno Capelas disse...

Bem , o poema do Manoel de Barros eu até posso ajudar. :D

Eu simplismente queria entender como é que ele faz coisas tão simples parecerem complexas.

Abração!

Anônimo disse...

Belo texto Theo. Talento em prosa e verso. E em silêncio.

Sds

Theo G. Alves disse...

Mut, meu velho,
ao que me parece, as coisas simples são paradoxalmente complexas e nosso olhar sobre elas é que precisa aprender mais sobre as formas humildes.

mais um dia a gente chega nisso. manoel de barros é um mestre infalível.

grande abraço, mano!



Celso,
como é bom vê-lo por aqui. este museu fica melhor com vc por perto.
Sua generosidade é mesmo imensa.
Abraço!!

Anônimo disse...

E que coluna, meu amigo, que coluna! Com cronistas assim, Seridó só pode ser o melhor dos lugares.

Iara Maria Carvalho disse...

Théo, o silêncio que precede essas palavras que te escrevo é muito inquietante, porque escrever sobre o teu silêncio é um desafio e tanto.

Sua poesia enche todas as linhas do tempo. Mesmo em prosa tão poética.

Um abraço!

Theo G. Alves disse...

Milton,
tenho certeza de que vc me lê melhor do que escrevo.
Certeza absoluta.

Um grande abraço, caríssimo



Iara,
palavras tão generosas vindas de quem tanto admiro só me deixam ainda mais contente.
Agradeço, agradeço muito!

Um abraço bem grande

Anônimo disse...

O que posso dizer é que estas linhas também significam mto p/ mim, meu caro amigo. São enigmáticas sim, e como são...mesmo assim me dizem mto do que sinto neste momento, dizem mto do silêncio tenebroso que me preenche.
Belíssimo artigo, profundo e denso como o seu autor.
Que 2007 traga centenas deles p/ nosso deleite/reflexão/ação/silêncio...
Abraço grande da serra...

Marco disse...

Grande Theo,
Que o silêncio que precedeu ao Big Bang, com toda a sua forta criadora, seja o prenúncio de seus belos textos que provocam reflexões em quem os lê.
Da sua lista de coisas interessantes, tem certeza que o filme do Steve Zissou é uma delas? Você não viu outros filmes mais, digamos, interessantes?
No mais, Manoel de Barros sempre!
Um forte abraço.

Theo G. Alves disse...

Salve, Marco!

agradeço suas palavras tao gentis... espero que meu palavreado miúdo traga algo de positivo. fico contente se isso se der.

quanto ao Zissou, tenho carinho enorme por esse filme. gosto do tom despretensioso e debochado que ele tem.

tenho visto e revisto alguns filmes que certamente seriam mais "interessantes" qu o Zissou, mas o Zissou me fez bem pra começar o ano. acho que é boa pedida. basta não esperar ver nele um clássico da comédia. vale pela despretensão.
:)

grande abraço!

Anônimo disse...

é o silêncio que tempera tudo os des-tempera...
reflexões do tudo...da ação e do silêncio

Theo G. Alves disse...

Ediney,
obrigado pela chegada até aqui.
Seja bem vindo.