4.3.07

Peça: 33. Notas Avulsas de Um Caderno de Viagens

Dia quarto

A vida acontece em grandes torrões de riso e sal nesta cidade. Hoje pela manhã, perto de uma das ruas principais, um monturo de crianças arrastava um cão morto por uma corda. Gritavam como pequenos selvagens. Havia nelas a violência explosiva de seus pais e dos homens que habitam as esquinas escaldantes destas ruas. Quase devoravam vivo o pobre cão morto.

As mulheres avistavam de longe seus filhos multiplicados no mundo. Uma delas sorria quase. Era por certo a mãe do menino que empunhava a corda no pescoço do cão. Era um troféu, eu sei: era um troféu.


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Dia décimo nono

Aqui o sol se põe ao avesso, entreva as mãos antigas de meninos ainda muito jovens. A foice que corta a cana mal se equilibra em suas mãos destroçadas, entrevadas por um sol mal posto.

Mas a noite há de durar, eu sei.

Cadernos de Viagem

Inicio agora neste museu adornado de pó uma série de anotações avulsas de um caderno de viagens.

São anotações desencontradas de um viajante acidental que, provavelmente, jamais saiu das paragens que descreve. Notas de uma viagem vaga e estéril, como estéreis têm sido meus dias, meus anos, minha ausência.

Peço desculpas pela viagem que ofereço.

3.3.07

Um Convite

O Celso me convidou para escrever sobre discos no Deadmen and Lollypops. Evidentemente aceitei, honrado.

Hoje faço minha "estréia" por lá com Zuma, do Neil Young. Inclusive com link para download do disco.

Aqui está o Deadmen and Lollypops

22.2.07

Peça: 32. Uma Carta Escrita ao Longo dos Anos

Currais Novos, janeiro de ...

Tudo está como sempre. Sabes bem que as coisas por aqui nunca mudam e são sempre as mesmas e é sempre o mesmo tempo, prenúncio e ataúde de um heráclito fracassado. Sabes bem que aqui o tempo não existe: ou nós não somos de fato: nem as coisas reais existem de verdade nestas terras. Nunca se pode compreender por inteiro. Fato é que tudo está igual, afora as coisas sempre diferentes.
Esperamos a chuva. Há boas promessas para fevereiro e os donos dos dias já falam em adiantar algumas semanas para a chegada de março, assim garantem que chova certamente no dia da ciência de São José. Sabes bem que por aqui o tempo é sempre distinto.
Nossa mãe fala cada vez menos. E escuta menos cada vez mais, está sempre a confundir nossos nomes e esquecer-se de tudo. Ainda insiste na máquina de costura que, se não costura nada, embala meu sono no chilrear antigo de nossas roupas ainda mais antigas. Em breve nossa mãe morrerá e tudo continuará igual, afora as coisas sempre diferentes.
Nosso pai, sabes bem, foi embora. E isso já é oferecer notícias demais.
Os meninos. Os meninos estão quase todos mortos. Ou quase mortos todos. Não mais de sede, como alguns estrangeiros desavisados possam ainda imaginar, mas de tédio e cansaço. O cansaço nos toma a todos invariavelmente, sobretudo a gente miúda como nós, sem vocação para as grandiosidades do tempo e da vida. Às vezes penso que não estar aqui seja mesmo o melhor lugar em que se possa ser. Sinto medo, eu confesso, confessamos, não do que nos espera, mas da ausência que nos toma. Temos nos distanciado tanto e de tudo que, de quando em vez, apenas ao não me ser é que me encontro. Confusas estas frases, no entanto, as mais sinceras. Confusas ainda mais: falo de nós, falamos de mim.
Tens notícias de Deus?
Por aqui já não aparece há tempos, sabes bem. Tudo está igual, afora as coisas sempre diferentes. Ainda esperamos, sebastianamente, por Ele, é verdade. Mas, também sebastianamente, temos a quase certeza de que já não virá. Deve andar ocupado com gente maior, que é sempre mais importante. Gente miúda como nós sobrevive bem à espera. Que mais poderíamos nós fazer que diferente fosse de esperar. Esperar até brotarem os prefixos e apodrecer-se o verbo.
Penso que, em breve, pouco restará do que temos sido todo este tempo. Descobrimos esta maneira profilática de nos exterminarmos limpa e lentamente. Não haverá sangue nas ruas, nem mesmo gente morta. O que morrerá são nossas particularidades, nossas pequenas diferenças. O que sempre fez de nós o que somos, agora não é nada, senão poeira de tempo e amarelo.
Do que te importarão essas coisas, pensamos. Talvez de nada. Talvez nem mesmo chegues a ler esta carta confusa em que falamos de mim, falo de nós. Talvez desdenhes estas terras, não sei. Mas aqui ainda mantemos o costume de dar notícias. Espero que tu já não tenhas mais o costume de não as receber.
Digo, dizemos, que em pouco não mais te escreverei, escreveremos. Não pela falta de respostas tuas, que isso jamais foi obstáculo, nem mesmo pela ausência nossa, mas porque nosso dia de se aproxima e, rezamos, não haja mais necessidade de enviar ou receber recados de onde estaremos.
Ainda que nossas casas estejam sempre abertas para ti, pedimos que não voltes. A distância há de tornar nossa imagem mais bonita.

Adeus.
Nós assinamos esta carta.

15.2.07

Feed

Para os bons amigos que visitam este museu quase sempre tão empoeirado, estou aderindo ao tal "feed", coisa que brutos como eu custam a entender.

O feed avisará aos amigos que utilizam esta ferramenta quando houver novas peças e velhas almas neste museu.

Oxalá isso funcione.

9.2.07

Peça: 31: Todo Sempre É Por Agora

Todo sempre é por agora. E a hora inevitável é sempre esta e esta e nunca outra e não a próxima. A hora inevitável, por ora, este caminho de tempo feito de estrelas e pó, de miudezas e esquecimento.

A boca semi-aberta pelo tempo ainda rebrilha como a chaga recém aberta a brotar sangue jovem e ainda viscoso. O tempo é este relógio morto à faca na calçada de casa às quatro horas da manhã. Já quase arborecia um sol de raízes secas e voláteis. As raízes em barro seco são para sempre efêmeras como a voz dos galos.

Todo sempre é por agora como foi infinito o dia de ontem, a hora vazia dos relógios moles de Dali e a mala ainda não feita de Álvaro de Campos: o cansaço do corpo finito no tempo infinito de agora.


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Aproveito para agradecer ao Milton Ribeiro por ter me enviado o famoso questionário do Proust e por ter publicado minhas simplórias respostas em seu espaço, que é dos melhores do universo dos blogues.

29.1.07

Peça: 30. Uma Primeira Lembrança

Hoje algumas de minhas primeiras lembranças me afligem e me alegram brevemente, como toda lembrança.

Relembro a imagem de Deus ao tocar meu ombro e dizer, quando adormecia o dia, "descansa, Adão, amanhã haverá o tempo".


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Mais uma nota de minhas desculpas inaceitáveis: tanta coisa tem me confundido, me acontecido, que tenho exercido muito poucamente a minha escrita ainda imatura. Quase nada tenho escrito de muito novo. Em verdade, estou a recuperar esboços destes últimos dois anos e que nunca foram utilizados. Por isso a escrita tão esgarçada e ainda me tem faltado competência para visitar os amigos sempre tão queridos. Continuo repetindo interiormente André Gide e dizendo "Se não puderes dizer 'tanto melhor', dize 'não faz mal'; há nisso grandes promessas de esperança".

16.1.07

Um Homem é Feito de Silêncios

Um homem é feito, sobretudo, de silêncios. É o silêncio a matéria que precede o barro, o silêncio da criação. E é desse silêncio que retomamos nossas forças, nossos impulsos.

Os primeiros esboços de um novo ano começam a ser traçados. Já se podem perceber algumas formas por trás destes primeiros dias: o esboço ainda é tímido, no entanto. Assim começam todos os anos: lentamente.

Esse começo lento é precedido por silêncio. O mesmo silêncio que precede o tempo e que a ele sucederá, provavelmente. O silêncio mesmo que havia antes do Nada e antes da ordem de se fazer a luz.

Desse silêncio sou feito. Cada um de nós e eu.

Este ano que já não é foi carregado de silêncios. Um calar profundo, de me fazer quase esquecer quem sou. O silêncio desse ano que já não é foi pesado, embora recompensador. Não consigo ainda recordar de todo meu nome e meu rosto diante do espelho: não os recordo exatamente ou já não são mais os mesmos. Pouco importa, aliás. Afinal, que importa o nome e a cara que temos? Não são nada de fato. O silêncio sim, o silêncio é.

Este ano que agora começa, lentamente eu disse, me traz algum som e o primeiro são estas linhas, enigmáticas talvez ao ponto de nada significarem senão para mim. Que seja, as primeiras palavras são quase sempre incompreensíveis. Só os silêncios são suficientemente claros e suficientemente eloqüentes.

As ruas sob o véu denso das madrugadas, a praça, a feira, as estátuas todas dormentes na madrugada: pode-se tocar com as mãos sujas no silêncio que as doma e é possível entender o que dizem, cada rua, cada beco, cada voz inaudível. É um convite: andem pela cidade nas madrugadas, sobretudo as raras madrugadas que sucedem as chuvas. São poucos os lugares em que se ouvirá melhor o silêncio das coisas. É nessas horas que só as coisas reais existem de fato.

De fato existe o silêncio.

O silêncio que principia estes primeiros sons. O silêncio que precede e sucede tudo, desde o sopro de Adão até o fim de todas as coisas, que precede e sucede o tempo, a música, a vida e o esquecimento. Que precede e sucede o riso, a angústia, o choro e a ventura. O silêncio que é.

Que tudo recomece. Que saibamos ouvir o que nos diz nosso silêncio criativo.
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Oito ou dez coisas para começar bem 2007

O livro Ó Serdespanto, do paraense Vicente Franz Cecim
A comédia sensível e despretensiosa A Vida Marinha com Steve Zissou
O profundo e belo filme Nossa Música, de Jean-Luc Godard
Um disco de Noel Rosa
Uma visita ao tenebroso site de fantasias Celebration Complex (
www.celebrationcomplex.com.br)
Uma visita aos bons e velhos amigos
Qualquer poema do Manoel de Barros
Ter um cachorro
Encurtar a memória para que a vida não pese demais
Desligar os telefones
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Este ano, para garantir algumas publicações aqui no museu, vou publicar as colunas que escrevo para o Jornal do Seridó, jornal aqui de Currais Novos. Essa é a primeira coluna do ano.

3.1.07

Notre Musique



Para nos redimir de nossos próprios erros, devemos começar pelo olhar sublimado sobre eles.

2007 para mim começa com um filme de 2004: "Nossa Música", do genial Jean-Luc Godard, com um olhar cinematográfico além da beleza sobre nossos tempos de guerra. Assim é o cinema, como diz o diretor a interpretar-se no filme: o cinema é a luz a iluminar nossa noite.

Comecemos o ano com nosso olhar atento sobre nós, para a beleza.

Um grandfe abraço e o desejo de felicidades aos amigos que sempre passam por aqui, por estas peças de pó.

Alvíssaras!