22.1.06

Peça: 19. Trecho de Um Caderno de Viagens

Mal cheguei à cidade e meus olhos já se cansaram como os de Adão, ao fim do primeiro dia. Os corpos se multiplicam ao longo das ruas, empilhados como o entulho das construções mais recentes. Não estão mortos ao certo.

No entulho das gentes, mulheres e crianças choramingam a morte pouca e a vida escassa. Os homens não reclamam. Embora também não aceitem. Permanecem calados como sempre viveram.

Uma mulher depositou numa das pilhas infinitas de gente, trinta, talvez trezentos mortos, um par de moedas opacas. Depositou-as e deitou-se sobre os outros. Tinha a esperança de que o Barqueiro Sombrio aceitasse a barganha. Mas não aceitará, eu sei.
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A foto é novamente de Nabor Kisser

15.1.06

Peça: 18. Um Homem Em Chamas

um homem em chamas
não acorda a cidade
como
uma bomba
ou
um relógio

um homem em chamas
ateia fogo à casa vazia
como a
um calabouço
ou um deserto

um homem em chamas
faz silêncio
e seu couro
duro
desmancha o fogo
silencioso

um homem em chamas
dorme desfigurado
como
um cão
ou
uma lembrança morta
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foto de Lee Lanier
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9.1.06

Ainda os 10 Melhores de 2005 - 3. My Morning Jacket – Z

Z é o quarto álbum da banda de Louisville, Kentucky, nos Estados Unidos, My Morning Jacket. Os vocais de Jim James são parte do motivo que alçam o disco Z ao terceiro lugar desta lista. Porém o MMJ é muito mais que isso: uma boa linha de contrabaixo (Two-Tone Tommy), ótimas guitarras (Jim James e Carl Broemel), o bom acompanhamento dos teclados (Bo Korster) e uma bateria muito bem acertada (Patrrick Hallahan) conduzem o som do disco Z à uma fluência encantadora que vai de riffs roqueiros como Lay Low à vocalizações maravilhosas como as de Wordless Chorus.

O MMJ vem mantendo os mesmos padrões de qualidade musical desde seu disco de estréia Tennesse Fire, de 1999. Depois disso já vieram At Dawn (2001), It Still Move (2003) e neste ano Z. Qualquer lista de melhores de qualquer um desses anos deveria contar com a presença do MMJ.

É bom prestar atenção no solo de Lay Low, que revela algumas das influências da banda e na belíssima e delicada Knot Comes Loose, que me remete diretamente à músicas como Through My Sails, de Neil Young (no disco Zuma, de 1974).

Knot Comes Loose:
“b.b. can't you see that i'm smiling???
can't you see - there's a part of me that's brand new???
used to be - was a part of me felt like hidin - but now it comes thru!
deep in my heart - that's where the knot comes loose.”

Faixas:

1. Wordless Chorus

2. It Beats 4 U
3. Gideon
4. What A Wonderful Man
5. Of The Record
6. Into The Woods
7. Anytime
8. Lay Low
9. Knot Comes Loose
10. Dondante

Gravadora: ATO/RCA Records
Data de lançamento: 04/10/2005
Mais informações: http://www.mymorningjacket.com

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Na foto a capa de Z

4.1.06

Peça: 17. A Paisagem Íntima Destas Ruas

Foi diante de nós. Já nada havia a ser feito. Estavam mortas e o corpo fatídico das ruas enternecia a cidade.

Cada pedra secular destas ruas é feita de silêncio ancestral e solidão. A solidão que endurece as pedras mais macias.

Estavam diante de nós. Eram o corpo silencioso das ruas.

Nada foi dito e continuamos nossa caminhada nesta procissão de silêncios.

Eram o corpo silencioso das ruas. Já estavam mortas antes mesmo de nascer o tempo ou Deus, eu sei.


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Foto de Nabor Kisser

2.1.06

10 Melhores de 2005 - 2. Arcade Fire – Funeral


Relutei em classificar Funeral, do Arcade Fire, entre os melhores do ano por uma razão das mais simples: Funeral foi lançado originalmente em 2004, porém só chegou ao Brasil neste ano, juntamente com a passagem da banda canadense pelo Tim Festival. Mas a verdade é que gosto tanto deste disco que arranjaria quaisquer justificativas para ajuntá-lo nesta lista.

O Arcade Fire é dessas novidades que surgem na música e que, mesmo sem grandes divulgações ou concessões, consegue espalhar seu som por boa parte do mundo. Me arriscaria a dizer que o Arcade Fire não cairá na mesma armadilha em que caíram bandas como Coldplay, que depois de um belíssimo disco de estréia caíram nas tediosas repetições. Verdade é que o AF nada tem a ver com o Coldplay.

Funeral é um disco ambíguo, no melhor dos sentidos: toda sua dose de sarcasmo e tristeza é compensada com um som pulsante e generoso, com letras intrigantes e um tanto sádicas.

Não se contagiar ouvindo este “Funeral” é missão quase impossível.

Neighborhood #4 (7 Kettles)
“I am waitin’ ’til I don’t know when,
cause I’m sure it’s gonna happen then.
Time keeps creepin’ through the neighborhood,
killing old folks, wakin’ up babies just like we knew it would.

All the neighbors are startin’ up a fire,
burning all the old folks the witches and the liars.
My eyes are covered by the hands of my unborn kids,
but my heart keeps watchin’ through the skin of my eyelids.”

Faixas:
1. Neighborhood #1 (Tunnels)
2. Neighborhood #2 (Laika)
3. Une Annee Sans Lumiere
4. Neighborhood #3 (Power Out)
5. Neighborhood #4 (7 Kettles)
6. Crown Of Love
7. Wake Up
8. Haiti
9. Rebellion (Lies)
10. The Backseat

Gravadora: Merge Records
Data de lançamento: 14/09/2004 (lançamento oficial; o disco só chegou ao Brasil em outubro de 2005)
Mais informações:
www.arcadefire.com
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Foto do Arcade Fire/divulgação